3 de julho de 2010

Inocência perdida

- Dispara, rapaz! - Exortava o avô, enquanto lhe metia à força a arma de pressão de ar nos braços fracos e frágeis de criança.

Miguel olhava, assustado, a arma, o avô, as inocentes latas de cerveja vazias alinhadas em cima do muro, à espera de morrer com um tiro seu. Não queria disparar. E se acertasse nos pássaros que passavam por ali no exacto momento em que o fazia? Tinha medo das armas, o simples som dos disparos dos caçadores, lá longe no meio do mato, assustava-o. Tremia e lutava por conter as lágrimas, não queria dar parte de fraco perante o avô, homem do campo, à antiga, que nunca conseguiria compreendê-lo.

- Um homem não tem medo! Um homem pega na arma e dispara. De que é que estás à espera, rapaz?

Mal conseguia segurar a arma que parecia pesar uma tonelada. Mas não sabia como sair daquela situação e acabou por encostar a coronha ao ombro. Pesadíssima, aquela arma. Fechou o olho esquerdo e espreitou pela mira da arma.

- Isso, agora apontas para uma lata e carregas no gatilho. Vá lá ver, não custa nada. Faz-te homem, rapaz!

Miguel cedeu e assim fez: apontou para uma lata e fechou os olhos, enquanto pensava "É melhor acabar com isto de uma vez". Contrariando os seus instintos, os seus medos e tudo aquilo em que acreditava, disparou. Fez um esforço sobre-humano para não saltar ao ouvir o tiro. Ainda assim, encolheu-se e fez um esgar de susto que o avô não deixou passar:

- Então, assustaste-te? É só um tirinho, não faz mal a ninguém. Olha, até acertaste na lata! Nada mal, para primeira vez. Agora tens de continuar a treinar.

Arregalou os olhos em pânico. Não queria continuar a treinar! Só tinha tentado uma vez para fazer a vontade ao avô, porque não sabia como o contrariar. Se o pai não conseguia contrariá-lo, como o faria ele, apenas uma criança? Naquele momento, odiava a sua vida. Odiava a arma que lhe cansava o braço, odiava as latas de cerveja perfiladas no muro a desafiá-lo, odiava o pai por nunca o defender, odiava o avô por o obrigar a usar uma arma. E principalmente odiava-se a si próprio por não ter coragem de dizer não.

Sem saber porquê, Miguel recordava este episódio enquanto apontava a arma ao empregado da bomba de gasolina, segundos antes de disparar.

Disparou, Fábrica de Letras

8 comentários:

Por entre o luar disse...

Tudo tem um principio... e o deste menino começou bem cedo! Bonito texto*

Tulipa Negra disse...

É verdade e muitas vezes só percebesmo as consequências dos nossos actos quando já é demasiado tarde.
Obrigada.

Ricardo Fabião disse...

Narrativa bastante inteligente,
Tulipa.
É incrível como o texto toma outro rumo nas últimas linhas;
o que parecia uma história de tempo linear, transforma-se num incrível flasback,
traçando uma paralela entre os dois acontecimentos de finais 'semelhantes'... ele dispara.

Ele aprendeu, e repete o seu ofício de homem: "um homem pega na arma e dispara".

Grandioso, Tulipa!
Verdadeiro; irônico.

Beijos.
Ricardo

Tulipa Negra disse...

Ricardo, obrigada pelos elogios. Era mesmo essa a ideia.
Beijinhos

A Loira disse...

Adorei o teu texto. Adorei como conseguiste retratar a situação de não conseguir dizer que não, adorei como o descreveste. E conseguiste manter-me em suspense até ao final. Não estava à espera que acabasse assim.

Beijinho.

Tulipa Negra disse...

Vera, muito obrigada.
É tão bom receber estes elogios todos logo da primeira vez que participo! Assim até dá vontade de continuar. :)
Beijinhos

El Matador disse...

Andou, andou e fez-se mesmo um homem.
Muito bom texto, bela ideia a da acção se passar numa reminiscência.

Tulipa Negra disse...

El Matador, Obrigada. Miguel fez-se um homem, mas de certeza que não se fez o homem que o avô imaginava.
Beijinhos