5 de novembro de 2010

Invisível

Nem sei por onde começar - e não me respondam "pelo início", já sei que é por aí que devia começar. O problema é que nem sei qual é o início... Bom, suponho que podia começar pelo início de tudo, mas o Big Bang já foi há uns milhões de anos valentes e talvez os dinossauros e a era glaciar não tenham nada a ver com esta história. Ou então pelo dia em que nasci, para mim foi o início de tudo, antes disso nem mundo havia. Mas a verdade é que desde esse dia também já passaram muitos anos, mais do que os que gostaria de contar, e provavelmente as minhas aventuras para começar a andar ou a falar não vêm ao caso. Nem sequer a escola primária onde me arrastei durante mais anos do que devia, as primeiras amizades que entretanto perdi e nem dos nomes me recordo, ou as quedas da bicicleta, mesmo com rodinhas de apoio - desastrado e desequilibrado, como se vê, em mais do que um sentido.

Mas como dizia, nada disto importa para o caso. Vendo bem, nem sei o que importa... A primeira relação amorosa? Talvez. A primeira séria, pelo menos, se bem que para mim todas eram sérias, achava sempre que aquela era a definitiva, era com esta que ia casar e viver feliz para sempre, desde a primeira, aos 15 anos. Bom, deveria antes ter dito a primeira desilusão amorosa, claro está. Foi de facto nessa altura que descobri que era invisível. Quando ela me olhava e não me via, quando falava de mim como se eu não estivesse presente, quando me tocava sem me sentir, quando tomava decisões sem se lembrar de mim e quando decidiu pôr fim àquela relação por já nem se lembrar que estávamos juntos. Este padrão repetiu-se em quase todas as relações amorosas seguintes - não que tenham sido muitas, mas ainda assim foram algumas. Parece que de início sou apenas transparente, notam-se ainda alguns contornos, mas com o tempo a minha condição piora e deixam de me ver de todo.

Depois houve também o emprego que arranjei com a cunha do meu padrinho, não tenho problema nenhum em assumir - sou transparente até nisto. Enfiaram-me numa sala sem janelas, com um computador e vários armários de arquivo, e deixaram-me estar para ali à minha vontade, sem me incomodarem. Só estranhei quando, meses mais tarde, apareceu outra pessoa para fazer o mesmo trabalho que eu... Nunca hei-de esquecer o ar de espanto na cara do chefe quando deu comigo ali, o ar atrapalhado a tentar explicar a situação ao novo funcionário, sem saber muito bem o que dizer, até porque mal me viam! "Estou novamente invisível", pensei.

Já vos disse que casei? Claro que não, que disparate. Pois é, mas casei mesmo, numa cerimónia linda toda organizada pela minha mulher. Se bem que desconfio que o padre nem percebeu muito bem com quem estava a casar aquela mulher, de vez em quando fazia um esforço notório para me ver, franzia o sobrolho e voltava a cabeça na minha direcção. Depois desse dia, tornei-me ainda mais invisível, pelo menos cá em casa. A minha mulher põe, dispõe, faz, decide e nem me vê. Os meus filhos, tenho dois, fazem o mesmo. Desde que se tornaram adultos, principalmente, agem como se eu nem existisse. De transparente a invisível a inexistente, suponho que seja a evolução natural da minha condição.

Pergunto-me como será quando morrer. Imagino o velório, o caixão aberto sem nenhum corpo lá dentro que se veja, toda a família e amigos a olharem, desorientados, a sofrer, a chorar... Porquê? Por quem? E na lápide as palavras “Aqui jaz um homem que nunca ninguém viu".

É esta a história da minha condição: condenado de nascença a passar pela vida sem ser visto. Mesmo vocês que me lêem, não me vêem aqui, à vossa frente, enquanto escrevo estas linhas. Estou cansado, mas nada posso fazer a não ser continuar o meu caminho até que alguém me veja, se conseguir...

Transparência, Fábrica de Letras.

14 comentários:

Turista disse...

Tulipa, muito bom!!

Ventania disse...

Excelente, adorei!

Tulipa Negra disse...

Obrigada às duas.
Beijinhos

El Matador disse...

Muito bom. Há gente que passa na vida assim, sem serem vistos, é uma pena.

Malena disse...

A invisibilidade, ao contrário daquilo que nos fazem crer nos cartoons, não é um dom, é um martírio!
Bom texto! :)))

Johnny disse...

Mais tarde ou mais cedo, pouco ou muito tempo depois da nossa morte, todos ficamos assim, invisíveis, sem nenhuma importância para ninguém.

Tulipa Negra disse...

El Matador, obrigada. Infelizmente há pessoas que passam sem ninguém dar por elas.
Beijinhos

Tulipa Negra disse...

Malena, tens razão, mas às vezes ser invisível até dava um certo jeito. Assim tipo Harry Potter, só quando fosse preciso, sempre não! ;)
Obrigada.
Beijinhos

Tulipa Negra disse...

Johnny, é o que nos espera a todos, mais cedo ou mais tarde. Só os muito grandes deixam obra pela qual são lembrados centenas ou milhares de anos depois da morte. O mais triste é quando somos invisíveis em vida...
Obrigada pela visita.
Beijinhos

Tulipa Negra disse...

Sandra, é uma forma interessante de ver as coisas. Mas não podemos ser demasiado transparentes, para não mostrarmos todas as nossas fragilidades e permitir que nos magoem.
Obrigada pela visita.
Beijinhos

Anónimo disse...

LOL

Isto é a história de tanta, mas tanta gente...

:)

Tulipa Negra disse...

Ulisses, pois é, infelizmente!
Beijinhos

Lala disse...

há aqueles que passam sem ser vistos, mas também há aqueles que não querem ser vistos.
Muito bom!

Tulipa Negra disse...

Lala, obrigada. E os que não querem ser vistos por vezes não conseguem... :)
Beijinhos