Abri as asas e voei. Subi em linha recta até às nuvens, depois virei à direita e planei paralela ao solo. Lá em baixo, a cidade. Os prédios enormes, as casas, as ruas, os carros, as árvores (poucas, muito poucas) e as pessoas. Visto aqui de cima, tudo é tão pequeno, insignificante. Fico assim uns minutos, a observar a vida frenética. Oiço os sons da vida a passar normalmente, observo as pessoas apressadas, a correr de um lado para o outro, aquele condutor a discutir com o outro, a esbracejar, furioso, ainda tem um ataque cardíaco antes do tempo, o rosto vermelho de raiva, as veias do pescoço a latejar. E admiro-me de conseguir ver tantos pormenores a esta distância. Mas não estou longe, afinal. Sem me aperceber, desci quase até ao nível do solo, estou a pairar pouco acima dos tejadilhos dos carros parados em filas intermináveis de trânsito.
Volto a subir, desta vez rodopiando até atingir a altitude certa, acima das nuvens, fecho os olhos e sinto o vento no cabelo e o sol a aquecer-me o rosto. Cansei-me da cidade. Decido seguir viagem ao longo do rio até chegar ao mar. A praia quase deserta a esta hora, estão a chegar os madrugadores, avós com netos, principalmente, carregados de chapéus de sol, cestas de verga e geleiras, toalhas de praia ao ombro, baldes de plástico, pás e ancinhos... Também estes falam alto, as crianças aos guinchos, a fazer birra logo de manhã, a avó a gritar para se calarem, o avô a ralhar com a avó para deixar o neto em paz que é uma criança e tem de se divertir e logo ali começa uma discussão que há-de durar até à noite. Aproximo-me mais, fito nos olhos a criança que se cala subitamente, subo novamente tão depressa como desci, os avós voltam-se sem perceber o que se passou, mas aliviados por ter acabado a gritaria.
Sigo o meu caminho e atravesso o mar. Vejo barcos de pesca, depois veleiros, por fim cargueiros e navios de cruzeiro. Vejo baleias a saltar e tubarões a caçar, vejo focas e leões marinhos e vejo gelo, muito gelo. Está frio, por isso decido dar meia-volta e seguir noutra direcção. Volto a entrar em terra, atravesso campos, passo por rios, vales, montanhas, aldeias, vilas, cidades, países. Ali a estátua da Liberdade, daquele lado a Torre Eiffel, lá ao fundo o casario branco das ilhas gregas, deste lado o deserto, acolá a selva africana mesmo juntinha à muralha da China. Vejo tigres, leões, pinguins, cangurus, macacos, pássaros de todas as cores acompanham-me por onde vou. E as pessoas, afinal, que são iguais em todo o mundo.
Vi tudo o que havia para ver. Dei a volta ao mundo inteiro e percebi que já não há nada de novo, nada de interessante, nada de estimulante. Aterrei novamente em casa por alguns minutos. Olho em redor e o que vejo? Fotografias das pessoas que foram importantes na minha vida, mas já nenhuma existe. Objectos acumulados ao longo de uma vida inteira e que a certa altura significavam tudo. Sorri ao perceber finalmente que nada daquilo era importante, não passavam de objectos, como era possível ter pensado que não conseguia viver sem tudo isto?
E de sorriso rasgado no rosto voltei a levantar voo, subi a direito, passei as nuvens, passei o sol, e continuei a minha viagem pelo espaço à procura de um novo mundo.