4 de agosto de 2010

Insatisfação

Abri as asas e voei. Subi em linha recta até às nuvens, depois virei à direita e planei paralela ao solo. Lá em baixo, a cidade. Os prédios enormes, as casas, as ruas, os carros, as árvores (poucas, muito poucas) e as pessoas. Visto aqui de cima, tudo é tão pequeno, insignificante. Fico assim uns minutos, a observar a vida frenética. Oiço os sons da vida a passar normalmente, observo as pessoas apressadas, a correr de um lado para o outro, aquele condutor a discutir com o outro, a esbracejar, furioso, ainda tem um ataque cardíaco antes do tempo, o rosto vermelho de raiva, as veias do pescoço a latejar. E admiro-me de conseguir ver tantos pormenores a esta distância. Mas não estou longe, afinal. Sem me aperceber, desci quase até ao nível do solo, estou a pairar pouco acima dos tejadilhos dos carros parados em filas intermináveis de trânsito.

Volto a subir, desta vez rodopiando até atingir a altitude certa, acima das nuvens, fecho os olhos e sinto o vento no cabelo e o sol a aquecer-me o rosto. Cansei-me da cidade. Decido seguir viagem ao longo do rio até chegar ao mar. A praia quase deserta a esta hora, estão a chegar os madrugadores, avós com netos, principalmente, carregados de chapéus de sol, cestas de verga e geleiras, toalhas de praia ao ombro, baldes de plástico, pás e ancinhos... Também estes falam alto, as crianças aos guinchos, a fazer birra logo de manhã, a avó a gritar para se calarem, o avô a ralhar com a avó para deixar o neto em paz que é uma criança e tem de se divertir e logo ali começa uma discussão que há-de durar até à noite. Aproximo-me mais, fito nos olhos a criança que se cala subitamente, subo novamente tão depressa como desci, os avós voltam-se sem perceber o que se passou, mas aliviados por ter acabado a gritaria.

Sigo o meu caminho e atravesso o mar. Vejo barcos de pesca, depois veleiros, por fim cargueiros e navios de cruzeiro. Vejo baleias a saltar e tubarões a caçar, vejo focas e leões marinhos e vejo gelo, muito gelo. Está frio, por isso decido dar meia-volta e seguir noutra direcção. Volto a entrar em terra, atravesso campos, passo por rios, vales, montanhas, aldeias, vilas, cidades, países. Ali a estátua da Liberdade, daquele lado a Torre Eiffel, lá ao fundo o casario branco das ilhas gregas, deste lado o deserto, acolá a selva africana mesmo juntinha à muralha da China. Vejo tigres, leões, pinguins, cangurus, macacos, pássaros de todas as cores acompanham-me por onde vou. E as pessoas, afinal, que são iguais em todo o mundo.

Vi tudo o que havia para ver. Dei a volta ao mundo inteiro e percebi que já não há nada de novo, nada de interessante, nada de estimulante. Aterrei novamente em casa por alguns minutos. Olho em redor e o que vejo? Fotografias das pessoas que foram importantes na minha vida, mas já nenhuma existe. Objectos acumulados ao longo de uma vida inteira e que a certa altura significavam tudo. Sorri ao perceber finalmente que nada daquilo era importante, não passavam de objectos, como era possível ter pensado que não conseguia viver sem tudo isto?

E de sorriso rasgado no rosto voltei a levantar voo, subi a direito, passei as nuvens, passei o sol, e continuei a minha viagem pelo espaço à procura de um novo mundo.

Uma longa viagem, Fábrica de Letras

17 comentários:

Vício disse...

eu acho que andas é a ver muitos filmes!
foi o super homem desta vez?

Tulipa Negra disse...

Vício, o super homem não tem asas. Quem tem asas é o Buzz Lightyear, do Toy Story (ainda não vi, mas quero ver). Para o infinito e mais além!

Vício disse...

eu fui ver o shrek no domingo...

Anónimo disse...

Muito bom texto, mesmo.

Gostei.

:)

Turista disse...

Gostei muito de voar contigo, Tulipa . Obrigada :)

Tulipa Negra disse...

Vício, e recomendas? Eu já nem o último consegui ver...


Ulisses, obrigada.
Beijinhos


Manuela, eu é que agradeço.
Beijinhos

El Matador disse...

grande viagem, sim senhora.

Tulipa Negra disse...

El Matador, realmente é grande. :)

Kawamura disse...

Texto Espectacular... Beijo grande.

Tulipa Negra disse...

Kawamura, obrigada! Beijinhos

JB disse...

Gostei da sua viagem! Se às vezes olharmos o mundo com outros olhos, noutrs perspectiva... é curioso as coisas que vamos descobrindo!

Bonito texto!

Beijinho

JB disse...

Gostei da sua viagem! Se às vezes olharmos o mundo com outros olhos, noutrs perspectiva... é curioso as coisas que vamos descobrindo!

Bonito texto!

Beijinho

Tulipa Negra disse...

JB, muito obrigada. É mesmo isso, ver as coisas por um lado diferente permite-nos descobrir um mundo novo.
Beijinhos

Eduardina disse...

Encontrei no seu texto algo de familiar...Eu também voo nos meus sonhos.Qundo me sinto perseguida, dou às asas(braços )e voo. Quando acordo, é uma sensação espectacular.Só tenho pena de não conseguir sonhar estes sonhos quando me apetece!
Beijinho.

Tulipa Negra disse...

Eduardina, obrigada. Podemos sempre sonhar acordadas...
Beijinhos

Sandra Castelo disse...

Qual super homem... voei contigo... e gostei do traço, gostei do jeito mas gostei mesmo da perspectivar.
Boa!

SC

Tulipa Negra disse...

SC, obrigada!
Beijinhos